Atuação das mulheres na História da Igreja

Regina Fernandes

Na cultura grega platônica a mulher não participava de cargos decisórios ou nos centros de pensamento da época, por ser considerada incapaz para tais tarefas. Na realidade, existiram filósofas, mas elas foram excluídas da história do pensamento tal qual aconteceu na teologia. Umberto Eco comenta que: “Não é que não tenham existido mulheres que filosofaram. É que os filósofos têm preferido esquecê-las, talvez depois de terem se apropriado de suas ideias.” (apud PACHECO, 2016, p. 28). Uma dessas mulheres filósofas foi Aspásia de Mileto (séc. V), que atuou como professora, mestre em oratória, e, em sua época e frequentou espaços intelectuais em Atenas. Entretanto, as historiadoras atuais da filosofia somente conseguem reconstruir sua história a partir de vestígios que escapam na história dos homens, conforme relata Thirzá Berquó: “[...] faz-se necessário procurar e recolher os vestígios da presença das mulheres em uma miríade de fontes, para que se possa construir, talvez, um retrato de sua presença na sociedade supracitada, ou pelo menos, dos discursos produzidos sobre elas.” (BERQUÓ, In PACHECO, 2016, p. 29). Ela ainda acrescenta sobre Aspásia:

A atuação pública de uma mulher, estrangeira, intelectual, filósofa e oradora, causou furor em Atenas. Ligada ao movimento sofista, de pensadores jônios que vendiam seus serviços como professores, ela afrontou os parâmetros da sociedade ateniense, que tinha por ideal a reclusão das mulheres no espaço doméstico. Por esta razão, teve muitas vezes a sua reputação atacada pelos poetas cômicos, sendo chamada de prostituta. Estas marcas históricas perseguiram a Igreja durante o período medieval e até os dias atuais conseguem se sobrepor aos esforços pela ampla participação das mulheres no ministério cristão. (BERQUÓ, In PACHECO, XXX, p. 40)

No cristianismo antigo e medieval foram muitas as mulheres que produziram escritos teológicos e filosóficos. Entre elas houve Faltonia Betitia Proba (séc. IV), mulher romana convertida ao cristianismo e que deixou poemas históricos escritos; Aelia Eudoxia Augusta (Séc. IV), dedicou-se aos estudos clássicos da filosofia grega; Egéria (sec. VII), que possivelmente escreveu a obra “Peregrinação de Santa Silvia de Aquitana a Terra Santa”. Também Dhuoda de Septimania (séc. IX), que escreveu o Livro Manual, obra de educação cristã; Roswita von Gandersheim (séc. X), “grande nome da literatura de fundamentação cristã em terras germânicas, sendo conhecida como a primeira poetisa de origem germânica na Idade Média”.

Algumas mulheres encontraram um lugar para produzir na teologia mística. Colocadas à margem da liderança religiosa e da teologia institucional, elas fizeram teologia no campo da espiritualidade, em relação com os temas do amor, da mulher e das Escrituras. A teologia mística, em comparação com os lugares institucionais da teologia no período medieval, era uma forma de não-lugar, até mesmo em vista do seu percurso apofático. Este foi o caso de Hidelgarda de Bingen (séc. XII), uma mulher alemã líder de convento, reconhecida como teóloga mística e que deixou vários escritos nessa linha e outros de cunho científico. Outra teóloga mística e muito conhecida foi Teresa de Ávila (séc. XVI), espanhola de família judia, foi responsável pela abertura de diversos conventos e pela escrita de várias obras nas quais relatava suas experiências místicas; sofreu perseguição da inquisição por causa das suas ideias e atuação.

Outras teólogas desse período medieval foram a monja Heloísa de Argenteuil (séc. XII), conhecida pelo seu romance com Pedro Abelardo e por sua capacidade intelectual, deixou sua teologia escrita nas cartas que escreveu para Abelardo, também em obras próprias como Problemata, em que trata de trechos bíblicos sobre os quais questionava. Clara de Assis (séc. XIII), contemporânea de Francisco da cidade de Assis, também foi teóloga e líder no monasticismo feminino, com poucas conhecidas, entre elas: Benção e Formas de Vida. Outra teóloga medieval foi Marguerite Porete (séc. XIV), uma béguina, que foi condenada pela inquisição na França por causa do conteúdo de seu livro: O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas e que Permanecem Somente na Vontade e no Desejo do Amor.

Embora no período da Reforma houvesse mulheres atuando no âmbito político, como rainhas, ou no campo econômico, como proprietárias, e que trouxeram impactos para o cristianismo com suas ações nas regiões onde exerciam poderes, a Reforma Protestante, principalmente no que tange à produção teológica, segundo os registros históricos convencionais, foi um evento masculino, articulado e protagonizado por homens. Os principais nomes que tradicionalmente relacionam à Reforma são de Lutero, Calvino Zuínglio e Thomas Muntzer. Mesmo quando se estende a lista não há nomes de mulheres incluídos. A razão disso não é que elas não atuaram para o acontecimento do movimento, mas, certamente tiveram produções apropriadas por homens, conforme alertou Umberto Eco, e os nomes escondidos.

 Podemos mencionar como uma das razões desse escondimento o fato de que a história também foi contada por homens em uma forma de historiografia androcêntrica, com isso, não sabemos, em detalhes, a incidência da participação feminina em todo o movimento. Há também o comportamento dos reformadores, que não foram capazes de se deslocar minimamente da cultura patriarcal de seu tempo, como menciona Sônia Mota: “Lutero viu como apropriado para as mulheres o papel de ajudantes e companheiras dos homens, cabendo a elas o tradicional papel de esposa e mãe, permanecendo sujeitas aos maridos.”, quanto a João knox ela explica que era “ainda mais radical, chegando até mesmo a ser grosseiro ao publicar um tratado intitulado ‘O primeiro clangor da trombeta contra o monstruoso regimento das mulheres’ (1558)”. João Calvino, conforme a autora “assume posição ambivalente”, não se posicionando claramente sobre o assunto, mas acrescenta: “Mesmo analisando os textos referentes à participação das mulheres na Bíblia, e até rompendo com a tradição em alguns escritos, o seu trabalho não trouxe consequências favoráveis ao papel das mulheres na liderança das Igrejas.” (MOTA, 2021, P. 52).

Conforme Claudete Beise houve, por certo, um esforço de escondimento das mulheres fruto da visão patriarcal da época:

Revisitar e reler a história, a partir da história das mulheres, é reconhecer que elas foram silenciadas e invisibilizadas. A história que chegou até nós foi a dos homens heróis e de seus grandes feitos. Nomes como Martinho Lutero, João Calvino, entre outros, são conhecidos. No entanto, nomes como Argula Stauff von Grumbach, Elisabeth von Calenberg, Elisabeth Schütz Zell ou Katharina von Bora são praticamente desconhecidos. (ULRICH, 2016, p. 73)

Sônia Mota também menciona a participação ativa de mulheres na Reforma, ainda que não mencionadas na história oficial, como “Catarina von Bora”, que, conforme ela “Era uma mulher culta, que sabia ler e escrever”; Catarina Schutz Zell “era uma mulher culta, leitora de Lutero” e deixou cartas escritas; Claudite Levet, que em Genebra era reconhecida interprete das Escrituras e pregadora; Marie Dentière, “também atuou em Genebra, não só pregando como publicando livros” (MOTA, 2021, p. 54-56).

No Período Moderno, mesmo diante dos avanços propostos pelo iluminismo e a presença de mulheres nos centros acadêmicos, não se tem notícias de aberturas significativas para a atuação delas, que continuaram nas sombras da produção masculina. Geralmente, recuperamos casos isolados e camuflados pela história ou que as relacionam à piedade e à devoção ao lar, como é o caso de Suzana Wesley e seu sonho de um avivamento religioso e sua importância para o reconhecido ministério do filho, John Wesley.

Na teologia acadêmica Dorothe Sölle escreveu sobre Deus e a religião a partir da condição de mulher e em vista de uma teologia menos patriarcal. Também buscou fazê-lo na ótica dos oprimidos e na perspectiva da vida. Ela propôs não o que se possa chamar de uma teologia feminista, mas um saber sobre Deus a partir da condição humana no mundo. Foi uma das importantes vozes no período pós-guerra na Europa, em conjunto com Dietrich Bonhoeffer, Moltmann e outros pensadores da virada moderna-contemporânea. Há também Hannah Arendt, que embora seja conhecida como filósofa, produziu uma tese de doutorado em diálogo com textos de Agostinho e trouxe importantes contribuições para a teologia.

Comentários