Educação Teológica, Missão e Povos Indígenas[1]

Regina Fernandes

Já há consenso, principalmente no meio acadêmico, da importância dos saberes milenares dos povos originários da América Latina, que ensinam um modo de se relacionar com o mundo marcado pelo bem-viver. Seus modos de vida integrados com a natureza e em relação harmônica com ela, as formas comunitárias de organização social, a relação com o corpo e outros elementos de sua cultura evidenciam que temos muito a aprender com eles sobre a vida.

Esses povos foram invadidos pela “civilização” ocidental que se entendia com um modo de vida superior ao deles, portanto, com o projeto de “civilizá-los”. No Brasil, os povos indígenas foram massacrados e dizimados, não somente em suas culturas, mas suas populações. Estima-se que havia em torno de 3 a 4 milhões de indígenas no Brasil na época das invasões ibéricas, em 1988 o Censo brasileiro identificou o número de 302.888 indígenas no país, certamente, não considerando descendentes de indígenas espalhados em centros urbanos que não se declaram nos censos como indígenas por medo de violências. Uma das estratégias utilizadas por grupos indígenas no Brasil foi de se misturar às populações não-indígenas, inclusive por meio de casamentos, para sobreviver aos ataques. Por essa mesma razão, para não serem reconhecidos, muitos abandonaram as línguas nativas, resultando na extinção de algumas delas. Hoje não sabemos ao certo o número de indígenas dispersos nos centros urbanos, mas sabemos que a maior parte dos brasileiros e brasileiras possuem origens genéticas indígenas. É comum em nossas genealogias não encontrarmos sobrenomes de nossas avós, pois muitos de nós somos descendentes de “mulheres capturadas a laço nas matas”, ou seja, descendentes de violências contra mulheres.

No Brasil, as culturas dos povos originários foram chamadas de selvagem, primitivas, inumanas, e, posteriormente, no mundo acadêmico, de exóticas, étnicas, tradicionais, sempre em comparação à cultura europeia chamada de “clássica”. Ora, sabemos que aquilo que é clássico é visto como perene e universal. O que é exótico é “fora de lugar”, excêntrico; o étnico se refere a um grupo específico. Nos parece que somente estamos usando novas palavras para o antigo comportamento de exclusão e dominação, mas agora sob o refinamento do vocabulário acadêmico.

É um fato e não uma especulação que o cristianismo chegou aos grupos indígenas de maneiras impositivas, inclusive o cristianismo protestante. Até hoje no Brasil os povos indígenas são tratados como alvo das missões evangelizadoras, em uma relação completamente vertical. São, na maioria das vezes, impedidos de criar suas próprias igrejas e projetos de educação teológica. Há no Brasil, inclusive no meio evangélico, uma prática de paternalização dominadora dos povos indígenas, inclusive no âmbito das missões evangélicas, que impedem sua autonomia. Há, todavia, esforços de resistência, como a I Igreja Evangélica Indígena Pataxó situada na cidade de Carmésia, MG, organizada e pastoreada pelo Pr. Izaías Hitohá Pataxó, em meio a muita oposição por parte de denominações e grupos evangélicos. Essa Igreja indígena tem suas origens em um projeto acadêmico de estágio em ministério integral de um curso de Teologia na cidade de Belo Horizonte. Por meio desse projeto iniciamos também o Seminário Teológico Indígena Terena, em uma aldeia em Miranda, Mato Grosso do Sul, com a finalidade de ser um espaço de educação teológica indígena, organizado e conduzido por eles. Infelizmente o projeto foi pouco tempo depois assumido por missionários não-indígenas e alterado para seus objetivos ministeriais e das agências enviadoras.

Lembrando a vocês que falo aqui desde a experiência de Brasil, a partir desse breve panorama podemos então tratar do assunto proposto na pergunta: “De que maneira as instituições teológicas podem ser fertilizadas pelos conhecimentos, as pedagogias e metodologias indígenas?

Primeiro - é necessário que as sabedorias indígenas sejam libertas de seu “não lugar” epistemológico e sejam reconhecidas como saberes válidos e importantes para a construção do mundo. Ela necessita se apresentar, como afirma Boaventura de Souza Santos, como uma epistemologia pós-abissal, do sul global, e uma “ecologia de saberes”. (SANTOS, 2009, p. 45). Para que as instituições teológicas se permitam fertilizar por quaisquer outros saberes necessitam superar a ideia de hegemonia do conhecimento ocidental, suas ciências e teologias, e conceber a existência de múltiplos saberes no mundo, entre eles, dos povos indígenas. Todavia, ainda é mais complicado, pois para isso será necessário conceber como válidas as formas diversificadas de construção, registro e comunicação desses saberes, como aponta a pergunta: “as pedagogias e metodologias”.

É fundamental reconhecermos que os conhecimentos indígenas se fazem de outras maneiras, e que seus métodos são tão legítimos quanto outros que têm sido utilizados em nossas instituições. Não se trata simplesmente de aplicar aspectos do pensamento indígena aos métodos exegéticos ocidentais para a leitura da Bíblia, mas de reconhecer como na espiritualidade indígena se trata o livro sagrado e as narrativas bíblicas, como percebem a palavra de Deus a partir de seus próprios pontos de vista e como a experienciam em suas realidades de vida. Não há ecologia de saberes sem ecologia hermenêutica.

            Segundo – afirmamos em nosso taller neste programa que as culturas indígenas se identificam em vários aspectos com a cultura hebraica antiga, principalmente nos aspectos da oralidade e da sabedoria. Mais do que estilos literários presentes em toda a Bíblia, são modos de construção e comunicação do conhecimento. Jesus Cristo comunicou oralmente seus ensinos, foram seus discípulos que realizaram os registros de seus ensinamentos. De igual forma, ele foi reconhecido como um sábio, pois utilizou a forma da sabedoria para pensar e falar sobre Deus. As culturas indígenas como culturas orais e de saberes ancestrais são, sem dúvida, mais adequadas para compreenderem nas narrativas bíblicas, desde que lidas nessas perspectivas. Os métodos exegéticos ocidentais conseguem aproximações ao sentido bíblico, mas são demasiadamente científicos e sistemáticos para alcançar todo o significado vivencial dos escritos bíblicos. Certamente a leitura bíblica indígena pode trazer uma imensurável contribuição para o entendimento bíblico.

Terceiro - Os povos indígenas latino-americanos não são mais campo das missões ocidentais, ao menos não no modelo do missionarismo moderno. Isso é um fato. Não se pode mais aceitar a interferência paternalista missionária entre os grupos indígenas. A única relação possível é de amizade, fraternidade, parceria e compartilhamento de sabedorias. Não se concebe mais a educação teológica que busca conhecer elementos da cultura indígena para que os use estrategicamente para a evangelização. Sem disposição para uma nova missiologia não há possibilidade de fertilização pelas sabedorias dos povos originários e suas cosmovivências.

            As missões cristãs, nas suas diversas expressões, foram tanto movimentos de evangelização como de conquista de povos e suas culturas. Pretenderam ser uma realização moderna da apostolicidade da Igreja, mas, ao mesmo tempo, se aliaram e representaram impérios e suas políticas expansionistas. O termo “missões”, que começou a ser usado pelos Jesuítas na Contra-reforma para a cristianização dos povos não-cristãos, carregou historicamente seu sentido bélico das origens. Infelizmente é um termo e uma prática viciada. Devido à isso que na América Latina se colocou em revisão a ideia de “Missão”, visando sua libertação de toda carga dominadora que representou na história dos povos.

            Não há dúvida de que a Igreja do Senhor Jesus Cristo está enviada ao mundo para testemunhar sua obra amorosa e libertadora. De igual forma a Igreja indígena nas suas mais diversas formas de se organizar é enviada para compartilhar suas espiritualidades. Não se trata de um envio especial ou esporádico, mas de um “estado de envio”, que caracteriza a própria natureza da Igreja. Não somos enviados como Igreja para dominar e destruir culturas, mas para testemunhar Cristo e compartilhar nossas experiências humanas de busca de Deus. As teologias devem nascer desses encontros de partilha, pois é saber da fé que nasce nos espaços humanos.

Quarto - é complicado falarmos de espiritualidade em relação à sistemas holísticos de vida, como são as cosmovivências indígenas, pois parece que estamos compartimentando a realidade, da mesma maneira das culturas ocidentais, onde a espiritualidade é um elemento da vida e não envolve, necessariamente, sua totalidade. No contexto bíblico o Espírito Santo, como Ruah e Pneuma divino, interpenetrava a vida dando a ela a energia para a sua sustentação no mundo. Conforme Jó “O Espírito de Deus me fez; o sopro do Todo-poderoso me dá vida.” (Jó 33:4). O Espírito Santo na Bíblia é o Espírito de vida, como explica Orlando Costas em seu seu no Boletim Teológico da FTL: “Espírito de Vida”. A teologia ocidental necessita da teologia indígena do Espírito Santo, para ver nele mais do que uma pessoa, mas uma força que opera no mundo gerando e sustentando a vida. Como explica meu amigo Pr. Izaías Pataxó, o Espírito é a força do Awê, termo indígena para a alegria da comunhão da vida. Se aplicarmos as teorias epistemológicas de Boaventura Santos, não são novas pneumatologias, pois esse é o nome das teologias sistematizadas sobre o Espírito Santo, mas um saber sobre o Espírito da Vida.

Certamente há muitos pontos interessantes que marcam as contribuições dos conhecimentos e metodologias indígenas para a educação teológica. É certo, entretanto, que não podemos mais falar de Teologia Latino-americana sem que se considere sua pluralidade e, nela, o lugar dos saberes indígenas e suas diferentes maneiras de se construir e comunicar.



[1] Texto apresentado no encontro da organização Memória Indígena em 01/10/2021.

Comentários