PENSANDO O CORPO NO CRISTIANISMO ANTIGO
A literatura produzida pelos seguidores de Jesus nas
primeiras décadas após sua crucificação (ca. 30) não é numerosa. A Primeira
Carta de Clemente de Roma aos Coríntios destaca-se, ao final do século I. Francisco
Leite brinda-nos com um livro apaixonante e atualizado sobre um aspecto
essencial para as comunidades cristãs: sua organização e conflitos, por meio do
estudo da Metáfora do Corpo. Apresenta uma introdução clara e bem fundamentada à
Epístola, de modo a permitir ao leitor ter acesso às principais discussões a
seu respeito, sem deixar de posicionar-se: Clemente seria o encarregado da
correspondência na comunidade romana (p. 179), escravo ou liberto (p.194), de provável
origem politeísta e versado na literatura grega (paideia; p.195), mas também na
judaica da Septuaginta e em muito do que viria a ser elencado no Novo
Testamento, sendo a epístola datada entre 95 e 98 d.C. (p. 84). Rechaça as
interpretações de que Clemente seria bispo de Roma (papa), um aristocrata. Para
que se possa entender suas propostas interpretativas, discute em detalhe as
perspectivas adotadas, com destaque para o conceito de circularidade cultural,
sincretismo (p.181), conflitos (p.181), trânsito religioso (p.183; 191), no
cerne do seu uso da teoria social. Apresenta, ainda, as propostas de estudioso
católicos e protestantes, seguidas das mais recentes, centradas no estudo do
conflito na sociedade romana e no cristianismo primitivo, com a devida atenção
à disputa entre facções nas comunidades cristãs, para que possa expor os usos
da retórica da concórdia, paz e unidade, frente àquela da sedição.
Centra a atenção numa passagem central, tanto na
epístola, como no pensamento antigo e mesmo universal e perene: a metáfora do
corpo. Explica que metáfora, no sentido amplo adotado, engloba símile,
parábola, fábula ou alegoria e que o corpo foi recorrente na cosmologia médica:
corpo, universo e sociedade associados. O estoicismo tão difundido no início do
Principado Romano, no primeiro século d.C. relacionava tudo que existe,
interligado (p.140). Autores da época usam a metáfora do corpo com o
funcionamento social: Tito Lívio (59 a.C.-17d.C.), Sêneca (4-65 d.C.), Paulo de
Tarso (5-67 d.C.) e Clemente (35-100 d.C.). Contrapõe os dois primeiros ao
apóstolo Paulo. Lívio (5,1) e Sêneca (Da Clemência, 2,2,2.) usam a metáfora do
corpo para justificar o mando de uns e a obediência dos outros, para o suposto bem
do todo corpo social. A passagem de Paulo (I Coríntios 12,12-27) vem bem
contextualizada: discute a autoria das cartas, as interpretações sociológicas
ou místicas e estuda o caráter específico da metáfora do corpo, como sátira e
zombaria (p.162), realismo grotesco (p. 163). Considera que a metáfora paulina deve
ser interpretada como uma paródia-travestizante da metáfora do corpo que
representa o Império Romano, tal como veiculada pelos textos imperiais (p.168).
Culmina com o versículo 23 (I Coríntios 12,23) e sua grotesca referência aos
órgãos genitais, os menos decorosos, por expelirem matéria impura, mas também
com a mais nobre, por sua função de promoção da vida (p. 169): sua metáfora é
de extrema subversão (p.170).
Esses eram os modelos disponíveis para Clemente. Toda sua epístola gira em torno da homónoia
(traduzido em latim por concordia, de maneira literal, “com a mesma mente”)
(p. 186). Distante da escatologia apocalíptica e mística paulina, Clemente abandona
o termo prógnosis (conhecimento prévio) usado pelo apóstolo Paulo, em
benefício da expressão estoica prónoia (“ter em mente antes”). O
primeiro é um termo arrepiante (predestinação), enquanto o segundo tende ao
racional (previsão) (p. 194). Utiliza-se, também, do conceito propagado pelo
Império Romano, eiréne (pax, paz) (p. 195), na defesa da ordem
social estabelecida. O autor analisa a perícope, traduz e comenta cada termo
usado e seu campo semântico e contrapõe a zombaria de Paulo do corpo harmônico
à proposta de Clemente de não incomodar a paz romana (p.215), o respeito à hierarquia
eclesiástica, com a divisão dos cargos, considerados como charísmata (graças
divinas), baseada em regras e fundadas em desigualdades. Na mesma linha, Clemente
ataca o que considera uma usurpação de cargos por pessoas jovens e indignas, e
reclama o respeito aos investidos de maneira regrada, no respeito ao princípio
de sucessão apostólica. Francisco Leite conclui que foi o olhar
latino-americano (p. 222) a permitir uma leitura crítica, denominada como
dialógica (dupla junção, conversa que vai e volta) e que a metáfora do corpo
pode ser interpretada como ordem ou caos, igualdade ou totalitarismo. O leitor
chega ao final com um quadro original da trajetória das comunidades cristãs, da
mística escatológica igualitária e zombeteira da ordem deste mundo à busca da
concórdia obediente e desigual, em paz com o mundo desigual e opressor. Ensina
muito sobre a originalidade da leitura latino-americana, também ela inserida
nos conflitos entre obediência e justiça.
Convívio social, conflito e obediência: Francisco Leite sobre “A metáfora do Corpo, uma análise dialógica da I Carta de Clemente de Roma aos Coríntios (37,5-38,1)” (Campinas, Saber Criativo, 2020, 250pp., ISBN 9786587446073.
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