UMA CRÍTICA AO PENSAMENTO MAJORITÁRIO REFORMADO NO BRASIL

Luis Fernando de Carvalho Sousa

Calvino, Calvinismos e violência. OLIVEIRA, Ciro Campelo; RIBEIRO, Priscilla dos Reis. Campinas: Saber Criativo, 2022.

Calvino, Calvinismos e Violência, organizado por Priscilla dos Reis Ribeiro e Caio Campelo de Oliveira é um livro necessário, sobretudo, para se pensar as relações do Calvinismo, no Brasil atual, e a relação com a política, no caso dessa obra.

Por meio de seis capítulos procura-se apontar situações envolvendo a violência no seio protestante de matriz calvinista. Antes de entrar no tema, propriamente dito, há um instigante prefácio de Ricardo Quadros Gouvêa que faz uma espécie de preparação no sentido de ambientar os leitores sobre o que vem pela frente. Gouvêa cita passagens bíblicas e busca situar o tema da violência nos debates acadêmicos sinalizando para algumas questões pontuais concernentes ao assunto, em seguida faz uma introdução geral sobre a obra.

O primeiro capítulo é intitulado: A mão de Deus: João Calvino e o assassinato de Miguel Servet, de autoria de Ciro Campelo de Oliveira. O autor procura retomar o polêmico debate envolvendo a controvérsia entre Calvino e Servet (ou Servetus) que resultou na morte deste último. Ciro explicita que há por parte de alguns grupos a divinização da figura de Calvino. Não é essa abordagem que procura fazer, nem o tratar como uma figura desprezível e execrável. O capítulo mostra Calvino como um homem de seu tempo que atingiu certa proeminência em Genebra. Era uma pessoa com várias influências, que gozava de privilégios por parte dos magistrados. Quando Servet expõe suas teses negando a trindade, por exemplo, e desafiando Calvino para um debate, talvez não soubesse que isso lhe custaria a vida. Por esse motivo foi morto (queimado vivo numa fogueira). Ciro ainda demarca que essa não foi uma exceção na trajetória de Calvino, pois algumas dezenas de mortes estão ligadas ao reformador. O que nos deixa a seguinte pergunta: se o protestantismo se coloca como moderno por que reproduziu estruturas e práticas medievais?

O segundo capítulo:  Calvino em Genebra: um homem de seu tempo em um tempo violento, de João Guilherme Lisbôa Rangel, trata da vida e atuação de Calvino em Genebra. Calvino é um homem de seu tempo e tem uma teologia definida. Muito se fala sobre a predestinação e as derivações posteriores do Calvinismo, mas Rangel volta-se para um item central na teologia do reformador e que, por vezes, é negligenciado por críticos e apoiadores de seu pensamento: a soberania de Deus. Se o Calvinismo pudesse ser resumido em uma frase, seria: a teologia da soberania de Deus. Das outras e importantes preocupações de Calvino essa, sem dúvidas, foi a principal e ela é retratada no capítulo de maneira precisa. Obviamente, o Calvinismo trata de outras esferas do pensamento, sendo uma delas a relação com o governo civil. Para tornar Genebra uma cidade “evangélica”, Calvino, em sua primeira passagem pela cidade, tentou mudanças no seu governo, sendo rejeitadas, e ele expulso. Anos mais tarde, de volta, mais maduro e com As Institutas da Religião Cristã já em sua primeira versão ampliada, Calvino colocou em prática seus ensinamentos, com destaque especial à maneira como o reformador tratou da figura dos ministros e seus papeis na cidade, de modo a suprir as necessidades locais e fazer com que houvesse um governo efetivo. No tocante à disciplina, o autor mostra que Calvino era um homem que primava pela ordem e obediência sistemática. Vivendo um tempo violento, reproduziu essa violência em suas sanções, opiniões e penas impostas às pessoas que não se submetiam ao sistema da cidade. A violência foi fruto do tempo da Reforma e Calvino não fugiu à regra.

Calvinismo e apartheid: uma síntese ideo/teológica em forma de violência é o terceiro capítulo, de autoria de Lyndon de Araújo Santos. Ele faz uma incursão na história da expansão do Calvinismo e sua chegada ao território africano. Na implantação das missões houve certa simbiose dos valores do pensamento iniciado por Calvino com determinadas ideologias de dominação e subjugação dos povos. Muitos países europeus alimentaram esse pensamento por anos e a evangelização e missão fora da Europa virou sinônimo de colonização e transladação de valores culturais para outros continentes, sem levar com consideração seus aspectos locais básicos como cultura, língua, tradições fundantes etc. O resultado foi uma dominação e colonização de corpos de uma forma violenta. Na África do Sul houve um agravante, pois quando se estabeleceu o regime de apartheid as igrejas reformadas aderiram ao regime e o legitimaram por meio de citações bíblicas e ilações que reforçavam a dominação e opressão dos negros. Nesse sentido, além do apoio à violência simbólica houve a aceitação da dominação física, inclusive. Quando grupos que contestavam o regime se posicionaram contra o status quo, a igreja teve uma atitude discriminatória preferindo ficar ao lado da “ordem”. Nesse caso, defendendo o apartheid e contra a luta antirracista. Episódios como esse são “feridas abertas” na história da igreja que Santos não se furta em fazer de forma imparcial, crítica e reflexiva, oferecendo subsídios ao leitor para que possa fazer uma análise coerente.

Em sua reflexão, Priscilla dos Reis Ribeiro relaciona o tempo atual com o período da ditadura civil-militar brasileira em Calvinismo e ditadura civil-militar: marcas de violência e de resistência. Ela faz um resgate histórico do Calvinismo no Brasil e sua identificação com uma teologia de dominação, flertando com o imperialismo em muitos casos. Oportunamente, faz uma relação interessante sobre a ligação da Igreja Presbiteriana em dois momentos distintos da história, mas com o mesmo ideário: o espectro do comunismo. A ditadura civil-militar se instalou no Brasil sob o pretexto de combate ao comunismo, da mesma forma como o candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro fez nas eleições de 2018. Nesses dois movimentos, houve o apoio de parte significativa da Igreja Presbiteriana. Priscilla destaca detalhes do seu envolvimento com o governo militar: participando de reuniões, denunciando pessoas e sendo, inclusive, conivente com a tortura. Isso evidencia um caráter imperialista na interpretação do Calvinismo por parte de alguns setores da Igreja Presbiteriana. A autora recorre a diversas fontes e relatos que enriquecem sua abordagem. Um desses documentos é produzido pela Comissão Nacional da Verdade, que visou elucidar crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro no período do regime militar. Entre as vítimas estiveram diversos membros das Igrejas Presbiterianas. As perseguições se davam pelo simples fato de debaterem temas como justiça e solidariedade nas Igrejas. Isso gerou perseguições e mortes, em alguns casos.  Contudo não é só de violência que se vive. Priscilla faz questão de finalizar seu capítulo mencionando o papel da resistência de setores que não compactuavam com a atuação violenta. Isso confirma o papel da Igreja Presbiteriana como um bloco heterogêneo que lida com as mais diferentes tendencias em seu seio. Há episódios que narram histórias de violência e desvio dos ideais propostos no início da Reforma, mas também há espaço para a esperança.

O quinto capítulo, Post tenebras lux – como trazer à luz os aspectos sombrios de Calvino: o exemplo do Museu Internacional da Reforma em Genebra, de Leonor Hernández e Priscilla dos Reis Ribeiro, trata da figura de Calvino e como ele é retratado no Museu da Reforma, em Genebra. As autoras descrevem uma visita ao museu e reconstroem alguns eventos e fatos marcantes sobre a vida de Calvino, destacando as questões polêmicas e violentas em sua vida. Diferentemente do que se pensa e imagina não há uma comoção em torno da figura de Calvino, em Genebra. Isso não diminui sua importância na Reforma e seu papel na condução da cidade. Mas, não há um “culto à personalidade”, como muitos podem pensar. Obviamente, por ser uma pessoa de temperamento forte e metódico em suas atitudes, a pecha de ditador lhe é imputada por alguns. Mas, para além dessas discussões, as autoras mostram que Calvino foi um homem comprometido com sua verdade e a ela dedicou sua vida. Por vezes, houve excessos em suas ações, contudo pertencia a um tempo de excessos.

Irênio Silveira Chaves encerra a obra com: Teologia Reformada, decolonialidade e bem viver: proposta para aproximação e diálogo. A implantação do protestantismo no Brasil e na América Latina, de forma geral, foi fruto de um processo colonial que visou subjugar e dominar a população por meio de um discurso europeu/estadunidense que desvalorizou a cultura local. A perspectiva decolonial visa retomar os valores das populações originarias e nacionais, no caso do Brasil, buscando um diálogo e convivência de maneira propositiva. As pontuações do autor vão nesse sentido: identificar os processos violentos da tradição reformada em si e propor um diálogo em forma de valorização de elementos culturais, não “demonizando-os”, como se fez na implantação das Igrejas protestantes.

O livro é um texto provocativo e necessário. Imprescindível para uma abordagem coerente sobre Calvino e os Calvinismos. A obra possui um diferencial que é tratar do revés do pensamento majoritário que impera de forma quase que hegemônica na história tradicional do pensamento protestante. Ela sinaliza uma perspectiva crítica que necessita ser conhecida e, até mesmo, aprofundada. Por se propor a ser um texto crítico e de viés problematizador, ela não dialoga (ou dialoga muito pouco) com autores considerados clássicos, como John Leith, por exemplo, um pensador imprescindível para a história da Igreja Reformada, assim como Wiliston Walker. Certamente isso daria mais robustez aos argumentos e ajudaria a situar o leitor que não conhece a história oficial, por exemplo. Mas isso não diminui a grandeza da obra e muito menos seu valor.

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