A EXPERIÊNCIA COM DEUS, HOJE
Diogo Santana é mestrando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), membro do Núcleo de Estudos em Cristianismos Orientais (NECO/ UERJA
modernidade se destaca por seu anseio inocentemente otimista à velocidade. “Nós afirmamos que a magnificência do mundo
enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade”. Afirma o poeta
italiano Filippo Tommaso em 1909 em seu Manifesto
do Futurismo. Entretanto, às custas de sua sobrevivência, e não apenas por
uma escolha pessoalmente decidida, uma multidão anônima de homens, mulheres e
crianças é convocada a construir esse novo mundo com suas próprias mãos e
sangue nas fábricas. O filme alemão Metrópoles
de 1927 (dirigido por Fritz Lang e roteiro escrito por Thea Von Harbou) é
preciso ao indicar como o anseio otimista pela velocidade gera, para alguns, a
expectativa de uma sociedade perfeita enquanto que, entre a grande multidão
anônima, a utopia é transformada em tristeza, cansaço e profunda revolta
através da abolição de um mundo estável e garantido pela tradição, costume e
verdades eternas e sagradas. A máquina se transforma em Moloch – uma cena que
impressiona no filme – exigindo permanentemente sacrifício humano: suas forças,
seu tempo, sua vida.
Somos
conduzidos por um tempo que arrasta consigo os deuses, os homens e o antigo
mundo que os legitimavam, hoje consumidos momentaneamente pelo fogo e entusiasmo
daqueles que vislumbram o progresso como consequência inevitável antecedido
pela experiência de caos e incerteza que experenciamos hoje. Para esses homens
cheios de otimismo a insistência na defesa de uma ordem envelhecida que passa, apenas
constitui inocência infantil ou maldade acompanhada por um desejo de
manipulação de alguns, afinal, “Como será
possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está
morto?” como interroga o Zaratustra de Nietzsche.
Entretanto,
para os homens tristes, presos contra a vontade à turbulenta experiência da
velocidade, tal processo de violência que nos arrasta apenas institui novos
deuses para serem venerados, deixando antes o sentimento de algo perdido e que
não pode ser recuperado. Para estes, a realidade se impõe muito mais dura, triste
e ausente de perspectiva. Persistir em tal entusiasmo, na defesa da velocidade
como condutora de um progresso que, no fim, tornou a modernidade “líquida” (um
termo caro a Zygmunt Bauman), legitimou uma racionalidade cínica que insiste em
permanecer, mesmo diante do fracasso de seu projeto inicial de instituição de
um homem “esclarecido”. É preciso uma crítica da razão cínica (como defende o
filósofo alemão Peter Sloterdjik).
Sendo
assim, a impressão em nós marcada por um tempo onde os absolutos parecem cair,
pode sugerir apenas a sedução de uma sofística que, lentamente, vai perdendo
seu prestígio e, contra ela, entre gente cansada, privada de fôlego e forças diante da máquina, a experiência do
transcendente é retomado a partir de uma nova configuração: a do nosso tempo. É
o ponto de partida de Sidney Sanches em A
Experiência de Deus Hoje (Ed. Saber Criativo. 2018. 112 pp.).
O
ensaio de Sanches já anuncia seu propósito com uma afirmação, conscientemente
complexa e por isso mesmo provisória e incompleta, porém convicta de que em
nosso tempo da velocidade, Deus é experenciável, e não apenas reduzido a uma
experiência do passado recuperada hoje como objeto das ciências comprometidas
com a investigação do fenômeno religioso. O eixo pelo qual desenvolve seu
pensamento atravessa a preocupação do significado que consiste em definir o nosso
tempo, o nosso conceito de experiência, a nossa espiritualidade e, por fim, a
nossa espiritualidade especificamente cristã.
Definir o nosso tempo,
este mesmo que se projetou de uma racionalidade iluminada e autônoma, e que
hoje endossa a impermanência de nossas certezas, compromete o interesse em
reconhecer o terreno onde estamos nos movendo no tempo. Estamos caminhando no
escuro, onde a compreensão e a linguagem se tornaram insuficientes para
interpretar a realidade e “o sentimento é
que há muito mais a ser dito do que a razão moderna consegue fazê-lo”
(SANCHES, 2018. p. 30). Uma carência que nos parece conduzir ao desespero e que,
para Sanches, ao evocar Camus, pode estabelecer de igual modo as possibilidades
de uma outra dinâmica para a racionalidade:
A
primeira coisa é não desesperar. Não prestemos ouvidos demasiadamente àqueles
que gritam, anunciando o fim do mundo. As civilizações não morrem assim tão
facilmente; e mesmo que o mundo estivesse a ponto de vir abaixo, isso só
ocorreria depois de ruírem outros. É bem verdade que vivemos numa época
trágica. Contudo, muita gente confunde o trágico com o desespero. (CAMUS,
Albert. apud SANCHES, Sidney. 2018.
p. 14).
Definir a experiência do
nosso tempo, significa por sua vez, justificar uma
unidade que não separa a vida em categorias abstratas como corpo e alma, físico
e metafísico, espírito e matéria. Justifica uma intenção de legitimidade e que,
por isso mesmo, substitui o especulativo e o abstrato pelo pragmático. Valoriza
a experiência sensível e imediata como critério que aproxima a vida e a cultura
como produção estética, rompendo assim com modelos historicamente determinados
e homogêneos não apenas na percepção do tempo e do espaço, como também de uma
dada experiência do sagrado.
A
experiência de nossa espiritualidade hoje se compromete a
possuir e a desfrutar de Deus (SANCHES, 2018. p. 29) do que propriamente
reduzi-Lo a uma abstração silogística. Primeiro porque ela se torna experiência
humana de Deus, na maneira como o sagrado é percebido e interpretado por nós.
Segundo porque essa experiência não está dissociada da vida que temos aqui e
agora e que exige respostas cada vez mais imediatas. Terceiro porque ela
implica o rompimento com um antigo paradigma e exige um paradigma novo para se
pensar, não apenas as organizações humanas, mas de forma pertinente, a maneira
como um grupo específico delas atualmente garante sua manutenção e permanência
no corpo social – as associações religiosas.
A experiência de Deus em
nossa espiritualidade cristã hoje, é justificada por
Sanches como uma drástica mudança de paradigmas envolvendo a descentralização
de uma autoridade hierarquicamente determinada pela tradição (o sacerdote, o
pastor), substituída pelo critério de comunhão e fraternidade endossada pela
narrativa evangélica e seu valor ético do seguimento de Jesus. Nesse aspecto, a
instabilidade dos nossos tempos, ao favorecer o rompimento com uma forma de
espiritualidade engessada e centralizadora, se abre para a oportunidade da
pluralidade e tolerância, onde “todos os
seres humanos, estão potencialmente incluídos nesta fraternidade de redenção”
(SANCHES, 2018. p. 90).
A vida nos é garantida pela poesia, o sensível discernimento do coração apaixonado, que tanto venda nossos olhos, quanto aumenta nosso grito. A fé, como a maior de nossas paixões, também constitui o clamor que torna inaudível todas as demais ansiedades humanas, da inquietação profunda pela eternidade e retorno à unidade: com Deus, com os outros, com Deus nos outros, com Deus em nós. Em fraternidade e solidariedade, sem distinção. O livro de Sidney Sanches se compromete a inspirar os líderes cristãos de nosso tempo a aceitarem as transformações pelas quais a identidade cristã está atravessando como oportunidade não apenas de garantia de certa perpetuidade, como também, legitimação de uma identidade cristã comprometidamente evangélica.
RESENHA. SANCHES, Sidney. A experiência de Deus hoje. Campinas: Saber Criativo, 2018, 114p ISBN 978-85-54925-09-3
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