A TRADIÇÃO TEOLÓGICA E A TEOLOGIA DA TRADIÇÃO

 Breve análise com a ajuda de Juan Luís Segundo

                                                                                       Baseado em Murad, Afonso. Este Cristianismo Inquieto, São Paulo: Loyola, 1994, p.. 113-125.

 Regina Fernandes

A Tradição da Igreja ou Teológica diz respeito à elaboração reflexiva e histórica da fé cristã, a partir da fé antropológica, em um esforço coletivo e constante de ordenação de crenças, confissões e saberes. Ela se utiliza da energia barata por ser, invariavelmente, força conservadora, embora não estática, tendo em vista ser retomada pela igreja em sua elaboração constante da fé.

Neste âmbito eclesial a tradição carece de ser força operante e de atualização da revelação para as novas situações históricas. Neste esforço, a Igreja, comunidade da fé, renova suas tradições, que são fruto da revelação interpretada, ao confrontá-las com as perguntas das situações históricas sempre novas.

A Escritura (enquanto registro), produto também da tradição oral, deve ser fonte alimentadora da Tradição gerada pela Igreja em seu esforço interpretativo e de atualização dela e do sentido da Palavra de Deus para os novos tempos. Desta forma, a Tradição torna-se sempre viva e vivificante da própria fé. Conforme Juan Luís Segundo todo esforço de interpretação das Escrituras é contextualizado, tanto em relação ao horizonte bíblico como em relação ao horizonte do leitor, e, por isto, é somente aproximativo da verdade que o texto anuncia. Para tal, requer-se uma pré-compreensão decorrente da percepção do tempo e situação histórica de partida para o processo interpretativo, o que está proposto no Círculo Hermenêutico.

A Bíblia é um exemplo real do aprender a aprender e esta é a mesma ação que ela deve gerar em nós. A revelação se deu em meio a este processo tão caracteristicamente humano, de interpretar e significar a partir de contextos específicos. No entanto, há o risco da leitura ideologizada, tanto com foco na forma como em relação ao seu conteúdo, daí a importância da suspeita. Nesse caso, ela pode se tornar manipuladora do sentido bíblico, inflexivelmente conservadora e mesmo impositiva, dominadora. Para que a Escritura oriente a Tradição para uma forma libertadora, é preciso que ela (a Escritura) seja considerada em seu todo, inclusive o seu objetivo educativo evidenciado na história bíblica. Observar o contexto bíblico e o dinamismo das suas próprias tradições é fundamental e condição de possibilidade para isto.

Da mesma forma a prática eclesial e cristã em geral, ação histórica e contextual, deve ser geradora de reflexão e de significados, para que cumpra sua função educadora e transformadora da realidade.

Formular tradições faz parte do humano em sua tarefa de pensar e ordenar a vida. Definimos marcos no decorrer dos tempos e devem ser considerados em sua importância. O próprio texto bíblico é resultado da elaboração e constante reelaboração das tradições orais e escritas, revitalizadas a partir de novas vivências históricas de Israel, dos apóstolos, da Igreja etc., que são geradoras de luzes para compreensão e correspondência aos novos tempos. Neste encontro, tanto o contexto vigente é transformado, quanto as próprias tradições.

Não vivemos isolados no mundo, não vivemos isolados na história, por isso, o entendimento da revelação não é individual ou prerrogativa de alguns, mas pertence à comunidade da fé que caminha no tempo e no espaço. Neste sentido, nenhuma geração ou comunidade cristã específica, nem povo ou cultura, é portadora do conhecimento total de Deus possibilitado pela Escritura. “Construímos sobre construções” já iniciadas e alicerces já estabelecidos, considerando o que já foi feito, mas também em relação à novidade das perguntas do novo contexto.

É fundamental, portanto, considerar o contexto no processo tanto de interpretação do texto bíblico, como de revisão crítica das tradições e de sua atualização. A Palavra de Deus foi encarnada na realidade humana e situada na vida no mundo e na história, muito mais as tradições teológicas que construímos, que, normalmente, surgem de esforços interpretativos das Escrituras e das próprias outras tradições, sejam elas patrística, escolástica, reformada ou da fé latino-americana.

Outro ponto relevante de se considerar é que os contextos são dinâmicos e se modificam na velocidade do tempo e das mudanças culturais, portanto, embora o próprio termo “Tradição” esteja associado à ideia de algo duradouro, aparentemente fixo ou próximo disso, não pode ser permanente e em hipótese alguma definitivo, caso contrário, não cumprirá o papel de ser a elaboração da igreja no decorrer dos tempos, para fins de compreensão da própria fé e animação da prática eclesial.

É necessária nova compreensão da importância da Tradição Teológica. É comum sempre se rejeitar o tradicional em função do novo, como se um excluísse necessariamente o outro. Mas, o novo que surge totalmente desvinculado das tradições construídas e deixadas como herança, corre sério risco de ser inconsistente e sem identidade. Além do mais, não é uma postura que cabe à contemporaneidade, que propõe revalorizar o antigo no conjunto do novo, agora com novas significações, gerando uma outra coisa, que não é, necessariamente, nem um e nem outro. Não estamos nos referindo a velhas tradições que incorporam o prefixo “neo” aos seus antigos nomes, mas continuam sendo velhos postulados e velhas posturas sob o disfarce de novidade.

A Tradição cristã é fruto da própria elaboração hermenêutico-teológica da igreja ao longo da sua história e é legada de geração a geração. Por outro lado, uma concepção da Tradição que é insensível aos novos tempos e suas demandas, que se mostra hermética e portadora da verdade absoluta, como postulados a serem meramente apreendidos, não serve à Igreja por não cumprir o principal objetivo de todo esforço reflexivo a partir da fé: possibilitar à cada geração, à cada povo, a cada cultura, em cada tempo e lugar e a partir deles, o conhecimento sempre atual de Deus e sua ação constante na história.


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