A morte de Jesus como um fato histórico e político
Regina Fernandes
A morte de Jesus foi de caráter soteriológico-escatológico,
relacionada aos anúncios dos profetas do Antigo Testamento, conforme relidos pela
Igreja, pelos apóstolos sob as luzes do evento cristológico. Mas, ela também
teve um caráter político, afinal, Jesus Cristo é Deus encarnado e sua obra se
desenrolou no tempo e no espaço da história. O caráter escatológico não anula a
importância das implicações políticas do ocorrido, e ele pode ser identificado
nos seguintes fatos:
Jesus foi entregue aos principais
sacerdotes (Mc 14.43) por Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, que tinha
claro interesse nas vantagens financeiras que essa traição proporcionaria. Em
dito popular: “ele vendeu sua alma”, por moedas.
Esses principais sacerdotes, após enviarem
soldados e uma multidão armada (com espada e porretes Mt 27.47) para prender
Jesus, pois é o tipo de gente covarde, que arma as multidões, que se esconde
atrás dos comandados, que opera nos bastidores do mal; o entregaram ao sumo sacerdote,
usando para isso argumentos rasos, sem sentido, coisa de quem não gosta de
pensar, coisa de quem não quer ouvir, coisa de quem se julga por pré-conceitos,
coisa de quem manipula as falas de outros para se beneficiar, para fazer o mal
que já reside seu coração deseja. (Mc 14.55)
O sumo sacerdote, cercado de servos,
aquecido, assentado em seu trono sacerdotal e postando-se como o guardião da
santa tradição, o santo entre os santos, arguiu Jesus sobre o que diziam sobre
ele. Jesus fez silêncio, sabia que qualquer coisa que dissesse seria usada como
justificativa para algo que já estava decidido, sua condenação.
O sacerdote fez então uma pergunta que Jesus
não poderia deixar de responder: se ele era o Cristo. Respondeu então que sim,
mas como dizer que não? O sumo sacerdote parece ter entrado em êxtase, rasgou
as vestes, tinha agora a prova para o que desejava fazer: condenar Jesus. Mas, mais
do que isso, mostrar para todos como era zeloso, como era poderoso e como era
mais justo do que o Justo.
Os outros sacerdotes entraram em delírio,
queriam vê-lo morto, valentões cuspiram nele e lhe deram socos, religiosos
zombaram dele, soldados o esbofetearam. Foi um dia terrível de dor e humilhação.
Estavam liberados pelo grande sacerdote e pelos sacerdotes menores a soltar
toda a sua violência, sua ira, sua agressividade contra ele, afinal, era um
herege, um blasfemo, se afirmava filho de Deus, ensinava que o Reino de Deus
não seria tomado por armas (Mc 14.48), chamava para a paz e para a justiça,
ouvia samaritanos e amava os pobres da Galileia. Essa multidão, como um gado
conduzido, não quis pensar, enxergar, somente jogar sobre ele toda a sua
insanidade. Os soldados, banalizadores do mal, obedientes às ordens, poderiam
torturar e matar sem serem culpados por isso.
Agora, com a anuência do grande sumo sacerdote,
os sacerdotes menores levaram Jesus para Pilatos, o representante do governo
romano. Aqueles viam nele uma ameaça político-religiosa, pois esse era o único poder
que os judeus detinham por estarem subjugados por Roma. Já este, Pilatos, via
em Jesus uma ameaça política, que poderia, por causa dos judeus, ameaçar a Pax romana.
Ainda assim não tinha certeza, mesmo sem certeza não quis se comprometer, lavou
as mãos (Mt 27.24). Quem tem o poder e não o usa para fazer o bem, melhor se
não o tivesse, melhor que o desse a outro/a, pois não há água no mundo
suficiente para retirar a culpa da inoperância daquele que segura o poder nas
mãos somente para alimentar uma ambição doentia de poder.
Assim, crucificaram Jesus, o justo, o
inocente, o Filho de Deus.
Jesus foi assassinado, foi vítima de uma
política covarde, mentirosa, invejosa e perversa. Ele doou sua própria vida,
mas isso não desfaz o fato de que foi assassinado, vítima dessa política má.
O sentido escatológico da morte de Jesus
permanece, pois, por ela somos salvos, por ela a morte é vencida, por ela
Satanás é derrotado. Ela instaura, definitivamente, o Reino eterno de Deus na
ordem de mundo, e coloca todos aqueles e aquelas que estão sob esse reinado na
esfera da sua justiça manifesta concretamente na realidade histórica e na
esperança de sua plena manifestação. Aguardamos a vida plena no reino do Justo.
Porém, essa morte ocorreu no espaço-tempo
da esfera humana. Ela também é histórica e se tornou cena de memória de horror
dada a violência que a envolveu. Uma violência que não é justificada pela
defesa da fé, pois não há verdadeira fé em Deus que se justifique pela violência,
como ensinou o próprio Jesus no Sermão do Monte e no impedimento que Pedro
usasse a espada para defendê-lo. O Reino de Cristo não é instaurado por armas. Ela foi causada pelo mais puro e egoísta
desejo de poder, travestido de religião e de zelo religioso, numa linguagem disfarçada
de piedade e de purismo teológico, como comenta muito bem Rubem Alves na
introdução de sua obra Da Esperança.
Esta cena, dadas suas proporções
teológicas, vem se repetindo ao longo da história até os dias atuais, tristemente,
no interior do próprio cristianismo, onde líderes religiosos, auto comissionados
para serem guardiães da sã doutrina, encabeçam (escondidos atrás das turbas)
perseguições, torturas e até morte a todos aqueles e aquelas que, ao pensar a
fé diferente deles ameaçam sua hegemonia. De igual forma, se associam aos Pilatos
lavadores de mãos para obter favores políticos. Os Pilatos, que surgem na história
de Jesus Cristo até os dias atuais, se fazem amigos dos religiosos de plantão, afirmam
realizar seus desejos, cedem às suas artimanhas com a única intenção de se
manter também no poder. Assim, Cristo
continua a ser crucificado por esses e pela multidão que os segue de olhos
vendados, não porque confiam cegamente, mas porque não querem enxergar seu
próprio erro.
A paixão de Cristo é, sem dúvida, um
evento de salvação de alcance escatológico, mas não pode ser tratada como um
ato de menor importância, uma simples memória trágica ou isolada em seu sentido
histórico, pois ela ganha novos significados naqueles que sofrem pela justiça
no mundo pela qual Jesus também morreu.
A morte de Jesus não pode ser fechada em
uma caixa teológica-escatológica, pois em sua historicidade e infinitos
significados, é como o Sol no crepúsculo que vai iluminando gradativamente,
fazendo nascer o dia, quando vemos todas as coisas sob suas luzes.
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