RAUSCHENBUSCH, Walter. Uma Teologia para o Evangelho Social. 1ª ed. Trad. do inglês por Martin Santos Barcala. Vitória: Unida, São Paulo: ASTE, 2019, 273p. 14x21cm. ISBN 978-85-67604-10-7.

 Sidney Sanches

“Temos um Evangelho Social. Necessitamos de uma teologia sistemática suficientemente ampla para se equiparar a ele e suficientemente vital para apoiá-lo” (p. 47). Esta declaração feita pelo pastor e teólogo batista norte-americano, nascido em uma família luterana alemã em 1861 e falecido em 1918, nos introduz em um movimento protestante de reforma social, de caráter teológico e pastoral, bastante influente nos Estados Unidos da América na virada do século XIX para o XX, especificamente entre os anos de 1870 e 1920.

Cinco anos após o fim da Guerra Civil, os Estados Unidos passaram por um processo de reconstrução onde o rápido crescimento industrial e comercial aumentou a população urbana. Criou-se uma elite de monopólios e oligopólios industriais e comerciais. Eles concentravam a massa de trabalhadores que labutavam longas jornadas diárias de trabalho em condições precárias, com direitos trabalhistas limitados ou simplesmente inexistentes, e salários baixos. Era o Capitalismo na sua forma mais crua e bruta: predatório e individualista, deixado por sua própria conta e risco, onde prevalecia a lei do mais forte que conquistava os seus privilégios às custas de uma multidão de desprivilegiados.

Esse é o cenário para o surgimento dentro do Protestantismo americano de uma plataforma reformista social moderada nominada como Evangelho Social (Social Gospel). Suas principais bandeiras eram vinculadas às condições de trabalho: abolição do trabalho infantil, semana mais curta e menos horas diárias de trabalho, salário básico, regulamentação dos direitos trabalhistas. Essas preocupações já eram partilhadas por movimentos protestantes socialistas no continente europeu, em meados do século XIX, especialmente no Reino Unido, preocupados com os impactos da revolução industrial na vida dos trabalhadores. A consciência era que o Capitalismo deixado a si mesmo criava uma massa empobrecida e uma elite privilegiada e que esse resultado era incompatível com a fé cristã. A obra de Walter Rauschenbusch é uma resposta a esse estado de coisas e o seu modo de sustentar teologicamente o movimento do Evangelho Social.

Ela é precedida de uma Introdução pelo teólogo brasileiro metodista Helmut Renders que apresenta Walter Rauschenbusch e o ambiente de sua formação e atuação pastoral e teológica (p. 13-43). Ele nasceu em 04 de outubro de 1861, e faleceu em 25 de julho de 1918, na cidade de Rochester, Nova Iorque, onde fez sua formação teológica. Em 01 de junho de 1886 foi ordenado pastor da segunda igreja batista alemã de Nova Iorque, onde atuou até 1897. O bairro era ocupado por famílias de trabalhadores e Rauschenbusch começou a questionar as suas difíceis condições sociais. Junto com dois outros pastores formou a Sociedade de Jesus que, mais tarde, em 1892, veio a ser chamada Fraternidade do Reino. O intuito era apresentar a dimensão social do evangelho e promover o bem-estar social dos membros da comunidade. Coeditou a revista A Favor do Direito entre 1883 e 1891, com a finalidade de disseminar suas ideias entre as igrejas e convocá-las à ação comum. Em 1891 viajou para a Inglaterra, tendo contato com o socialismo cristão britânico. Em 1897, deixou a atividade pastoral para ensinar no Seminário Batista de Rochester. Em 1901 viajou pela Alemanha, onde desenvolveu estudos com a teologia liberal e a crítica bíblica; e, depois, esteve na Inglaterra aprofundando contatos com cooperativas de trabalhadores e grupos socialistas cristãos. Em 1902, e até sua morte, lecionou História da Igreja no Seminário Batista de Rochester. Nesse período surgiram as obras que o colocaram como uma das principais lideranças do Evangelho Social e seu principal articulador teórico: O Cristianismo e a Crise Social (1907), Cristianizando a Ordem Social (1914), Os Princípios Sociais de Jesus (1916), e Uma Teologia para o Evangelho Social (1917).

Nesta última, Rauschenbusch construiu sua “teologia sistemática suficientemente ampla para se equiparar a ele e suficientemente vital para apoiá-lo” (p. 47). O empenho foi reajustar a Teologia sistemática a partir do Evangelho Social ultrapassando as questões espirituais e a consciência individual em direção às questões sociais e a consciência social (p. 47-71). Por outro lado, a falta de uma teologia para o Evangelho Social deixava os cristãos sem uma resposta para seu tempo com duas consequências: ou abandonavam as exigências sociais para atender ao cristianismo, ou deixavam o cristianismo para atendê-las. Era preciso uma mudança na base da Teologia cristã a partir do Reino de Deus e da ética de Jesus vinculada à solidariedade social. Para ele: “o Evangelho Social não é um interesse passageiro, mas que está destinado a se tornar um dos ingredientes permanentes e dominantes na teologia” (p. 71).

Rauschenbusch revisou as doutrinas cristãs desde a ótica do Evangelho Social, observando que: “Seu interesse permanece na terra, com as relações sociais da vida que acontece agora. Está preocupado com a erradicação do pecado e o cumprimento da missão de redenção” (p. 73). Por isso a reflexão teológica a partir do Evangelho Social começa pelo pecado e suas consequências sobre a vida individual e social humanas (p. 73-124). Deixando a atenção ao pecado individual, ele atenta às causas e consequências sociais do pecado quando ele afeta a moralidade pública, o sistema político-econômico, o Estado e o relacionamento entre nações (p. 77). Pecado é egoísmo demonstrado na negação do bem feito ao próximo gerando relações humanas injustas em uma sociedade onde há seres humanos exploradores e explorados, negando a natureza do Reino de Deus de amor e igualdade. O pecado humano não é somente individual limitado ao seu próximo. Temos organismos sociais que refreiam ou aceleram o pecado individual, criando e justificando uma solidariedade maléfica, não de caráter supra espiritual e sim suprapessoal.

O pecado social requer salvação social onde a regeneração individual resulta na atuação social pelo bem do próximo e da coletividade (p. 125-154). No caso dos organismos e organizações sociais trata-se de uma redenção do egoísmo manifesto na renúncia à cobiça e à ganância, vícios típicos do Capitalismo autocrático onde os recursos estão nas mãos de poucos. Ao contrário, eles devem ser postos à disposição de sistemas cooperativistas e democráticos onde serão administrados por muitos. Para isso, a Igreja tem participação fundamental, pois como um ser suprapessoal “organizado em torno de Jesus Cristo como seu poder propulsor” tem como único objetivo “encarnar seu Espírito na vida e transportá-lo ao pensamento e conduta humanos” (p. 146).

Todavia, a Igreja somente cumpre seu papel na medida em que dá lugar central ao Reino de Deus em sua doutrina e prática (p. 155-182). O Reino de Deus é Deus presente e conduzindo a humanidade, organizada segundo a sua vontade, para se tornar uma comunidade igualitária, governada pelo amor, por meio do qual todos renunciam a seus direitos e privilégios em favor de todos. Jesus Cristo foi aquele que melhor interpretou e comunicou o Reino de Deus à humanidade. Assim, devemos observá-lo e seu ensino conforme apresentado na tradição sinótica, ao invés dos complexos esquemas metafísicos nos quais sua vida foi aprisionada. Interessa ao Evangelho Social a maneira como Jesus viveu sua vida ativa em função do Reino de Deus, com muito mais “interesse em estabelecer a qualidade divina de sua personalidade nos atos livres e éticos de sua vontade, do que consistindo da herança passiva de uma essência divina” (p. 170).

Estabelecido o núcleo teológico fundamental, Rauschenbusch desenvolveu os demais conceitos teológicos. Deus é o primeiro deles (p. 183-198). Conceitos humanos de Deus sempre são mesclados com imagens advindas das estruturas sociais nas quais vivem os seres humanos. É assim que aprendemos uma imagem distante, despótica e autocrática de Deus. Jesus trouxe a imagem de Deus de dentro da vida familiar como um Pai igualmente acessível e amado por todos. Ele também é justo colocando-se ao lado daqueles que sofrem injustamente devido às opções econômicas e políticas de grupos e indivíduos. E, ainda, é solidário vinculando todos a si mesmo, também vinculando uns aos outros, criando uma fraternidade humana universal.

Também a doutrina do Espírito Santo junto com os temas da Revelação, da inspiração e da profecia foi reajustada ao programa do Evangelho Social (p. 199-205). Por meio da presença do Espírito Santo os seres humanos aprendem a partilhar a mesma experiência comum. Revelação, inspiração e profecia estão ligadas à forte experiência do Espírito onde o indivíduo recebe uma nova Palavra de Deus capaz de transformar a coletividade na qual vive.

As doutrinas do batismo e da Ceia do Senhor foram revitalizadas pelo Evangelho Social a partir de suas influências sociais (p. 207-215). Originalmente, o batismo era um compromisso com o futuro Reino de Deus que estava a chegar e a nova ordem messiânica. Essa compreensão é suficiente para refundar o batismo em sua importância ética e espiritual para a vida cristã (p. 207-210). A Ceia do Senhor forma, nutre e mobiliza a Igreja como um corpo fraterno disposto a dar-se pelos seres humanos em busca da realização do Reino de Deus na sua coletividade (p. 210-215).

A escatologia à luz do Evangelho Social se ocupa do estabelecimento futuro do Reino de Deus na sociedade humana, e não como um escape individual para uma dimensão transcendental e celestial (p. 217-242). Deus age na história humana para conduzir seu Reino ao fim perfeito. Quando este acontecer não será para trazer um desfecho final e definitivo para a espécie humana, mas para prosseguir o seu aperfeiçoamento coletivo.

Rauschenbusch reserva o último capítulo para reajustar a doutrina da expiação conforme a contribuição do Evangelho Social (p. 243-273). Uma vez que o entendimento teológico da morte de Cristo variou conforme as épocas em resposta às suas ansiedades, atualmente são os problemas sociais que demandam atenção urgente da humanidade, e a morte de Cristo deve ser um encaminhamento de suas soluções. Grupos organizados da sociedade tendem a investir contra qualquer um que aponte seus males sociais, e isso também aconteceu com Jesus na sociedade judeu-palestinense do seu tempo. Os pecados sociais confrontados por ele foram: fanatismo religioso, ganância e poder político, corrupção da justiça, espírito e ação da massa, militarismo, orgulho de classe (p. 250-256). Esses pecados são universais, passam de uma geração a outra, numa solidariedade humana daqueles que os fazem e daqueles que os sofrem. A morte de Jesus foi consequência do enfrentamento dessas forças poderosas do mal em favor dos que as sofrem durante sua vida inteira. Sua vontade unida à entrega pessoal a Deus fez a reconciliação e reconhecimento mútuo entre Deus e os seres humanos. Aprendemos, da morte de Cristo, sobre o poder avassalador do pecado, a revelação do amor para aniquilá-lo e, por meio dele, o enfrentamento do mal no mundo.

A obra de Rauschenbusch foi recebida com rejeição e com aceitação. Os parágrafos finais deixam divisar a rejeição: “O profeta é sempre mais ou menos marginalizado pela sociedade e profundamente solitário e desabrigado. [...] Portanto, recordar que Jesus sofreu antes dele é seu conforto merecido” (p. 273). Por outro lado, a liberdade de expressão em uma sociedade democrática promovia a aceitação do Evangelho Social: “A era do cristianismo profético e democrático já começou. Isto interessa ao Evangelho Social, pois ele é a voz da profecia na vida moderna” (p. 273).

A rejeição à obra veio de dois lados. Da sociedade norte-americana do século XIX centrada no individualismo exacerbado que via incompatibilidades com as ideias igualitárias de cunho socialista. E do Protestantismo norte-americano apoiado na tradição confessional que recusou a exegese histórico-crítica e o programa teológico liberal nela adotado. Por outro lado, ela encontrou ampla aceitação entre os setores eclesiásticos sensíveis às questões sociais que demandavam atenção à época. Através dela, o Evangelho Social teve ampla divulgação entre pastores e teólogos de denominações protestantes, inspirando muitas iniciativas para identificar problemas sociais e agir para a sua solução. Esse “avivamento” social fez a todos acreditar que o Reino de Deus estava prestes a ser estabelecido na América e que ela tinha um chamado divino para levá-lo às nações da terra. Os conflitos da Primeira Grande Guerra, seguidos da crise do Capitalismo americano e mundial, a morte de Rauschenbusch e outros divulgadores do Evangelho Social, e o refluxo da Teologia liberal e dos socialismos cristãos com a ascensão do Fundamentalismo americano determinaram o seu fim não pouco depois dos anos de 1930.

Uma crítica feita à obra de Rauschenbusch é a aplicação dos ideários socialista e da Teologia liberal para apoiar a sua teologia bíblica-sistemática. Na medida em que aquelas refluíram, a obra perdeu vitalidade e força. A outra foi o excessivo otimismo que fez da expectativa do Reino de Deus uma realidade ao alcance da humanidade. Os sucessivos eventos desastrosos do século XX se encarregaram de enterrar esse otimismo utópico.

Todavia, permanece o princípio estabelecido por ele de que se deve buscar nas Escrituras e na Teologia cristã em diálogo com a sociedade contemporânea soluções para os problemas sociais e as necessidades humanas. Ele foi praticado no movimento protestante dos Direitos Civis e pelo fim da Guerra do Vietnã, bem como na formação do Conselho Mundial de Igrejas e tantos outros organismos e movimentos regionais e locais reformadores da sociedade ao longo do século passado.

Na segunda metade do século XX, a onda fundamentalista americana arrefeceu e do seu meio surgiram os Protestantes evangelicais interessados em retomar a preocupação com a busca de soluções para os problemas sociais de dentro do Evangelho. Sua influência fez surgir os evangelicais latino-americanos e o movimento de Missão Integral nos anos de 1960. Parafraseando Rauschenbusch, ela ainda carece de uma teologia sistemática suficientemente ampla para se equiparar a ela e suficientemente vital para sustentá-la.

Para os protestantismos do século XXI, após cem anos, a obra de Rauschenbusch permanece um projeto teológico utópico a ser constantemente revisitado. A missão cristã no mundo exige a observação e enfrentamento dos males sociais desse tempo e os estímulos e esforços pelo bem da humanidade. Ela mostra que ativismos sociais reformistas cristãos sem uma teologia bíblica-sistemática tendem a perder seu horizonte utópico do Reino de Deus. Por outro lado, ela apela continuamente à teologia bíblica-sistemática para que não desperdice a oportunidade de dotar a Igreja de um Evangelho que seja a boa-nova do Reino de Deus para o mundo contemporâneo.

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